Não havia uma pessoa no salão do hospital, se não fosse o cheiro típico de desinfetante, até poderíamos confundir com um hotel. Belize seria a camareira e o sr. Costa do Marfim seria o hóspede.
Diariamente Belize tentava amenizar as dores do sr. Costa do Marfim o fazendo acreditar que estava em outro lugar, em outra circunstância e que ele ainda tinha controle sob a sua estadia.
Não era incomum as demais enfermeiras e os pacientes ouvirem Belize acordando o seu hóspede:
-Bom dia, sr. Costa do Marfim! – Sempre com um sorriso de orelha a orelha – trouxe o seu café da manhã e suas vitaminas.
-Bom dia, querida, obrigado. Será que eu poderia ter aquele jornal hoje? – Perguntou se remexendo na cama sem abrir os olhos.
-O garoto do jornal ainda não passou, mas assim que ele passar eu trago para o senhor. – Respondeu colocando a bandeja com a sopa e os remédios em cima da mesinha ao lado da cama.
-Qual a programação de hoje? Algum passeio pela cidade? Faz tempo que não saímos do quarto, não acha? – Sentou na cama alcançando a bandeja.
-Tem razão, irei olhar com a recepcionista o que temos de divertido para hoje. – Sentou na poltrona ao lado da cama aguardando o paciente tomar as pílulas.
Costa do Marfim era um senhor de 92 anos que tinha alzheimer há 15 anos e já não conseguia mais lembrar como tinha chegado ali. Já tinha passado por 6 casas de saúde antes da sua filha o colocar nesse hospital, isso ele também não lembrava. Nem da filha.
Há 3 anos Belize era a enfermeira particular dele, ela fazia questão de estar intimamente perto dele, de alguma maneira ele a reconhecia e isso era o único avanço que conseguiram em todos esses anos de trabalho.
Quando ela não podia estar com ele devido ao escalamento do hospital, ela o visitava informalmente e ainda representava a camareira. Belize tinha comprado roupas que se assemelhavam a de camareiras para tornar o teatro mais verídico, já que Costa do Marfim se lembrava de muitos detalhes de suas estadias em hotéis durante a sua vida antes da doença.
Alguns dias eram mais difíceis que outros, nem sempre Belize conseguia manter uma conversa por mais de 2 minutos sem que Costa do Marfim começasse a falar frases soltas sem contexto. O dia mais difícil no trabalho foi quando um médico residente entrou no quarto do sr. Costa do Marfim enquanto ele estava acordado (o que não acontecia nunca, já que todos sabiam das condições que Belize tinha pedido) para fazer novas anotações sobre a evolução do alzheimer:
-Boa tarde, Sr. Costa do Marfim. Como está se sentindo hoje? – Perguntou sem olhar para o paciente.
-Quem é você?
-Sou o doutor Gabriel Lemos, vim saber como o senhor está. – Ainda não tinha trocado olhares com o homem que estava na cama.
-Estou bem, o que um doutor quer no meu quarto? Entrando sem bater. – Falou tentando se endireitar na cama.
-Eu vim saber sua condição, que bom que está bem. Tomou as medicações hoje? – Nenhum contato visual.
-Que medicações? Eu tomei minha vitaminas. – Já estava sentado na cama.
-Qual a sua enfermeira? – Falou procurando o nome da responsável na prancheta pendurada na beira da cama.
-Eu não estou entendendo nada, quero que saia do meu quarto ou vou chamar os seguranças. – Disse puxando a coberta para o lado e tentando colocar os pés para fora da cama.
-É normal não entender. – Falou o residente anotando em seu bloco de notas que o paciente estava tendo delírios.
-Sai do meu quarto. – Gritou Sr. Costa do Marfim pegando o controle que ele achava que acionaria os seguranças, mas era para chamar Belize.
Belize recebeu o chamado e correu até o quarto para atender. Chegando no quarto encarou o residente e percebeu o que estava acontecendo. Tentou acalmar o Costa do Marfim dizendo que tudo não passava de um mal entendido, que o residente era um hoteleiro novato. Puxou o médico para fora do quarto e explicou a ele a situação:
-Ele é especial, todos aqui tratam ele de maneira diferenciada porque eu solicitei, não tem isso no seu bloquinho?
-Não deveria ter tratamento especial aqui, Belize. Isso aqui é um hospital e não um teatrinho que você faz o que quer. Sou um médico e exijo respeito, seja de você ou de qualquer outra pessoa.
-O que você quer que eu faça? Ele já tem 92 anos, não podemos levar isso por sei lá mais quanto tempo nós temos com ele? – Disse abaixando a voz.
-Quero que você faça de acordo com o tratamento. Ele pode ter 50 ou 100 anos, siga o tratamento. – Engrossou a voz sem olhar diretamente para Belize.
-Ele é o meu pai, tá bom? Não vou seguir tratamento nenhum, vou fazer o que for melhor para ele. – Acrescentou imposição à voz.
-Que seja. – Falou dando as costas.
Belize entrou no quarto e encontrou Sr. Costa do Marfim deitado na cama encarando o teto. Então pronunciou:
-Eu estou num hospital.
E não teve mais conversa naquele dia.